Aspectos Psico-Sociais
ASPECTOS PSICO-SOCIAIS
Aquando do aparecimento de uma doença reumática crónica juvenil é importante alertar, paralelamente ao cuidado a ter com diagnóstico e tratamento, para outros aspectos igualmente importantes que por vezes nos passam ao lado, sem lhes darmos a devida atenção.
Todas as crianças com doença reumática crónica (DRC) estão em risco, não somente pelas terapêuticas prolongadas a que são submetidas mas também pelas complexas dificuldades sociais e emocionais a que têm de fazer face.
As potenciais interferências com o desenvolvimento normal, impostas pela doença crónica, são variadas e subtis e dependem das características da doença, da criança e da sua família.
A ajuda que se pode dar a estas crianças e às suas famílias depende do conhecimento dos riscos que elas correm em cada etapa do seu desenvolvimento. Cada vez mais se deve encarar essa ajuda duma forma multidisciplinar, de modo a que elas encarem também a sua vida adulta em segurança.
Para a maior parte das crianças com DRC, a doença propriamente dita interfere somente em aspectos limitados da sua actividade diária, mas noutras, confere-lhes condições de vida severas que afectam as suas actividades mais elementares.
O que se pretende para estas crianças e suas famílias é sempre que possível, diminuir o impacto da doença e prevenir disfunções. Para algumas crianças com DRC, a doença causa desadaptação ou incapacidade. Nesta incapacidade pode começar um “handicap”, criando barreiras e impedindo a criança de participar em algumas actividades escolares, desportivas e lúdicas.
Um handicap representa uma interacção entre a desadaptação e o meio ambiente físico e social da criança. Por isso, para prevenir um handicap numa criança com DRC exigem-se atitudes diferentes de criança para criança, tendo em atenção o desenvolvimento físico e intelectual e os seus hábitos sociais.
Os problemas a que temos que fazer face quando a criança tem um ano são completamente diferentes quando ocorrem na idade escolar ou quando se inicia a adolescência.
Duma maneira geral uma doença crónica interfere com a vivência diária do doente, não só no aspecto físico mas também psicológico e social. E se essa doença se inicia na idade pediátrica, estes aspectos podem tornar-se verdadeiramente angustiantes.
De uma forma resumida, vamos lembrar as principais diferenças que ocorrem nas diferentes etapas do desenvolvimento duma criança, sem esquecer o papel importante que tem a influência do seu meio ambiente social e familiar.
Durante os primeiros dezoito meses de vida, as modificações operadas na criança tornam um ser desamparado e totalmente dependente, num ser capaz de comunicar e mover-se de uma forma independente no seu meio ambiente.
A criança começa a ver o Mundo como um lugar estável e seguro, adquirindo o sentido dos outros e do seu próprio corpo. Ao estabelecer a sua auto-confiança e a confiança nos outros, vai desenvolvendo novas tarefas e aprende a controlar algumas frustrações.
Quando um acontecimento imprevisível acontece, por exemplo uma doença reumática crónica, há uma interrupção no desenvolvimento da criança em relação ao ambiente, assistindo-se muitas vezes a uma regressão na realização de tarefas que já conseguia executar. Frequentes vezes a criança deixa de andar, de falar, de imitar e passa a exigir e a não tolerar.
A presença duma DRC tem muitos outros efeitos potencialmente destrutivos no desenvolvimento da relação dos pais com a criança. Os pais idealizaram um filho saudável que iria crescer e desenvolver-se sem contrariedades. Por isso alguns pais reagem demonstrando sentimentos de raiva, de culpa e muitas vezes, depressão.
Dos dezoito meses aos três anos é a etapa da vida em que a criança desenvolve a sua autonomia. As perícias motoras permitem a sua maior independência em relação aos outros. Isto permite que a criança adquira rapidamente o seu sentido locomotor e de comunicação, desenvolvendo as suas habilidades e a sua competência social. Elas querem fazer tudo sozinhas e têm um desejo ilimitado de explorar, controlar e manipular o que as rodeia. O desenvolvimento intelectual e da linguagem neste período, além de facilitar a comunicação, promove experiências com as pessoas e objectos.
A doença física crónica introduz restrições e exigências não habituais no meio ambiente da criança. Nesta idade, ela entende a sua doença apenas como algo que a afecta e interfere com as suas actividades e escolhas. É entendida como qualquer coisa que dói, que a separa das pessoas mais importantes da sua vida, que requer por vezes, tratamentos dolorosos, frequentes visitas ao médico e que a impede de brincar.
Tudo isto pode ser entendido como uma derrota ou castigo, o que as poderá tornar apáticas, passivas e muito dependentes. As repercussões negativas fazem-se sentir principalmente no desenvolvimento intelectual e da linguagem.
Por vezes os pais sentem não ser capazes de controlar a supervisão e a responsabilidade que assumiram pelos cuidados a prestar aos filhos. Assim passam a ter para com estes atitudes de superprotecção e “hipermimo”.
As crianças dos 4 aos 6 anos adquirem o sentido da iniciativa e aprendem a dominar tarefas, sentindo prazer quando têm sucesso ou evidência de algum poder. Não lhes importa a qualidade nem o valor dos objectivos que querem atingir, mas sim o chegar até eles. Sentem necessidade de serem aprovados nos seus objectivos, para desenvolverem o seu sentido de iniciativa.
A doença física durante este período pode limitar a aptidão da criança para executar as suas competências motoras e sociais. Restrições físicas, limitações na sua força ou agilidade e episódios frequentes de experiências dolorosas, podem limitar o seu entusiasmo e a capacidade para atingir os seus objectivos.
Por outro lado, os pais limitam ainda mais o entusiasmo e o poder de iniciativa dos filhos, sob o pretexto de os proteger das recaídas ou exacerbações da doença. Isto, para além de os poder tornar passivos e dependentes, leva-os a acreditar que estão doentes porque fizeram algo que não deviam; por exemplo molhar os pés, andar à chuva, comer mal, apanhar frio ou calor, etc..
Dos 7 aos 12 anos a criança passa progressivamente menos tempo em casa com os pais e mais tempo na escola com os amigos, que são o suporte das suas emoções. Embora ganhem independência dos pais necessitam da segurança de saber que lhes pertencem. São seres sociáveis mas muito influenciáveis.
A presença da DRC pode interferir de diversas formas com este normal desenvolvimento. A criança com DRC pode preocupar-se grandemente, não só com o seu aspecto diferente, mas também com a interferência que a doença tem no seu ciclo de amigos, passando muitas vezes a ser identificada pela própria doença. Apesar disto, a doença não pode ser um segredo para os amigos, mesmo correndo o risco de ser superprotegida por uns e repudiada por outros.
Por volta dos 10-12 anos, a criança tem necessidade de conhecer melhor a sua doença. Por isso, a informação tem que ser fornecida de uma forma segura e verdadeira, sem falsos optimismos ou pessimismos.
A adolescência é o tempo de desabrochar, expandir e evoluir. É um período de transição durante o qual a criança passa a ter comportamentos sociais e emocionais de pessoa adulta, confirmando a sua própria imagem, independentemente da dos seus pais e amigos. O sentido da sua própria imagem torna o adolescente ansioso e autocrítico, preocupando-se sobretudo com as características físicas e, para quem o ser diferente quer a maior parte das vezes significar ser imperfeito.
A doença reumática crónica (DRC) exige uma aceitação da imagem corporal alterada e uma dependência mais ou menos prolongada dos outros para algumas tarefas, o que se torna difícil de tolerar por parte dos adolescentes que se vêm assim dependentes, perdendo alguma autonomia. Isto torna-os ressentidos e rebeldes numa fase da vida em que se sonha com algumas fantasias e se fazem planos para o futuro.
Analisemos agora o impacto que a doença tem na família, na escola e na sociedade e tentemos lembrar algumas atitudes e comportamentos para fazer face aos diversos problemas que nos vão surgindo.
Viver de uma forma ajustada com uma doença física crónica como o reumatismo, é problemático. Apesar de alguns tentarem levar a vida de uma forma o mais normal possível, não deixa de ser uma experiência dolorosa e sofrida.
Nos cuidados a prestar a estas crianças e suas famílias, para além dos cuidados médicos especializados, Pediatra, Reumatologista, Fisiatra, Ortopedista, etc., são importantes os cuidados psicossociais, também eles especializados. Na prática, aplicar estes cuidados pode ser difícil por várias razões:
•porque a família está demasiado perturbada;
•porque os Médicos podem não estar sensibilizados para perceber o quanto a doença afecta a criança e a família;
•porque é complicado minorar o sofrimento, quando não se oferece com segurança um bom prognóstico, etc..
Muitas vezes, não é na primeira nem na segunda consultas que tomamos consciência do que há para abordar, além do tratamento médico. As questões vão surgindo à medida que a doença avança, devendo nós estar preparados para as respostas e para pedir ajuda sempre que necessário. Estas questões colocam-se sobretudo em relação ao crescimento e desenvolvimento da criança, à família, à escola, à doença propriamente dita e à sociedade.
No crescimento e desenvolvimento convém lembrar o que se relaciona com o físico e intelectual, sem esquecer o da actividade motora e o das emoções.
A doença reumática crónica pode afectar o crescimento da criança duma forma global ou em determinados segmentos. A nossa atenção deverá detectar precocemente defeitos estáticos, alterações do desenvolvimento ósseo, efeitos secundários da terapêutica no crescimento físico, atrofias musculares, etc., assim como as limitações que a doença pode causar à criança nas suas actividades diárias, comer, dormir, lavar-se, vestir-se, etc.
O desenvolvimento intelectual é por vezes esquecido pelos médicos responsáveis por estas crianças com DRC. Dependendo da idade, existem testes que se aplicam nas diferentes etapas da vida da criança e que ajudam em caso de dúvida, pois todos sabemos que a doença reumática não afecta primariamente o desenvolvimento intelectual e não será justo exigir de mais ou de menos a uma criança, só porque tem uma doença crónica.
O crescimento e desenvolvimento da actividade motora é muito importante desde o início da doença. A inactividade por dor, apatia ou frustração deve ser combatida energicamente recorrendo à fisioterapia, a talas de posicionamento, a exercícios moderados individuais e colectivos e ao apoio psicológico adequado. Os pais e professores não devem ser complacentes em relação a isto e muito menos pensar que a criança sossegada não cria problemas.
O desenvolvimento emocional e da personalidade é muitas vezes esquecido por quem trata apenas o aspecto físico da doença crónica. Compreender alguns sentimentos particulares da criança com doença reumática crónica não é difícil quando se está atento:
•Estará a criança triste, frustrada ou simplesmente de costas voltadas para a sua doença?
•Será que a criança tem uma auto-imagem empobrecida, limitada ou diminuída?
•Sentirá a criança ou o adolescente a sua independência ameaçada?
•Terá receios do futuro?
A ajuda psicológica especializada, recorrendo por vezes a testes psicológicos, permite que a criança encare a doença com outras perspectivas.
A DRC leva a família a um stress severo, causando sequelas em várias áreas: económica, emocional e social.
Como se relaciona a criança com os pais e irmãos? E estes com ela? Seria importante que estas questões fossem colocadas separadamente, sobretudo tratando-se de uma criança maior ou adolescente.
Como é que a criança sente que os pais a vêm? De que forma? Aceitam-na? Amam-na? Suportam-na? Uma criança com doença reumática crónica pode sentir que os pais estão desapontados com ela por causa da doença e isso pode afectar a sua autoconfiança em relação aos outros.
E em relação aos irmãos? Sentirá ciúmes? Raiva pelo irmão poder correr e ela não? Desespero por só ela ter que tomar medicamentos? Sentir-se-á culpada por alterar alguns planos da família como sejam as férias e os fins-de-semana, causando assim alguns sofrimentos e privações?
Como é que os pais se referem ao filho doente? Duma forma positiva, expressando o seu amor, aceitando-o, demonstrando compreensão com as suas limitações e “ handicaps”?
Duma forma negativa, com sentimentos de rejeição, expressando ressentimentos, mostrando-se desapontados e não tolerantes, sentindo que a criança se tornou um fardo pesado?
E os irmãos? Não devemos esquecer os irmãos, que podem ser de alguma forma prejudicados, não só no relacionamento com o irmão doente mas também com os pais, vendo por vezes limitadas as atenções, a disponibilidade e algumas exigências que eles não entendem porque são adiadas.
É importante reconhecer que por vezes os pais se encontram tão preocupados com a doença do filho(a) que minimizam ou não reconhecem os efeitos que essa doença pode causar nos outros filhos. A ajuda considerável que estes podem dar ao irmão com DRC, na integração rápida na sociedade, não deve ser ignorada. Por isso, não podem ser postos à margem do problema mas sim conhecê-lo, sabendo o que é a doença e quais os seus efeitos, assim como quais os tratamentos e de que forma podem ajudar.
A escola é o lugar de trabalho da criança em idade escolar. Há uma tendência para pensar que a escola é apenas o lugar onde a criança adquire a sua instrução académica. Na realidade é muito mais do que isso. É onde descobre vocações, onde experimenta sucessos e insucessos, desenvolve hábitos de trabalho, conceitos próprios acerca do que a rodeia, expectativas de futuro, e, de uma forma extremamente importante, as suas relações sociais.
Uma criança portadora de uma incapacidade física que interfira com a aprendizagem ou com a relação com os colegas, tem que levar ao desenvolvimento, por parte do pessoal escolar, professores e auxiliares, de estratégias que permitam fazer face a esses problemas...
A maioria das crianças com DRC tem uma inteligência normal. Então porque será que alguns estudos sugerem que estas crianças atinjam um mais baixo grau académico do que os seus colegas? A natureza e severidade das limitações físicas podem contribuir para uma dificuldade educacional, mas não são necessariamente as únicas a determinar o menor sucesso académico.
As características psicológicas como a motivação, perseverança, flexibilidade, destreza, capacidade para ultrapassar situações de stress, relações interpessoais, etc. são factores importantes que a criança com DRC terá de aprender a ultrapassar, para além daqueles que lhe advêm da sua incapacidade física, temporária ou não, que a impede de atingir as suas “ perfomances” escolares.
A ajuda prestada pelo pessoal escolar é fundamental nesta abordagem e os médicos e os pais devem estar em consonância com os professores, fornecendo-lhes informações acerca da limitação física da criança e da sua natural reinserção escolar.
O “staff” escolar se não tiver informações correctas tem que tirar as suas próprias conclusões, que podem ser incorrectas ou irrealistas, prejudicando mais que ajudando o nível escolar.
Em relação com os colegas, a criança com DRC pode encontrar algumas dificuldades em participar em actividades de grupo. Contornar o problema ou solucioná-lo pode ser difícil. O ideal será eles próprios encontrarem soluções recorrendo por exemplo ao melhor amigo, que deverá, ele também, conhecer a doença para ajudar a criança com doença reumática crónica na sua competição desportiva, ao mesmo tempo que a poderá defender perante outros colegas.
O absentismo escolar que estas crianças sofrem, fruto das exacerbações, hospitalizações, tratamentos, etc., interfere não só com a “performance” académica mas também na relação com os colegas.
Na realidade não existem soluções fáceis para evitar os maus efeitos do absentismo escolar. Para algumas crianças, as ausências excessivas à escola servem para aumentar a sua frustração e criar outras barreiras à competição escolar. Em algumas delas chegam mesmo a desenvolver-se “escolofobias”.
A escola tem que ser encarada pela criança como um lugar cómodo e seguro, onde possa desenvolver as suas actividades mentais e físicas com descontracção e entusiasmo.
O material para uso manual deverá ser adequado às dificuldades de preensão que algumas crianças referem. As mesas e cadeiras devem ser ajustáveis ao tamanho, facilitando posturas cómodas, evitando vícios de posição.
As vias de acesso à escola devem ser fáceis e seguras, atendendo às dificuldades de locomoção destas crianças. O mesmo se deverá exigir dos transportes públicos.
Em relação à doença propriamente dita, devemos explicar de modo a sermos entendidos pelos doentes e pais, o que é a doença, e ser capazes de responder sem subterfúgios às questões por eles colocadas, com verdade e convicção.
Na maior parte das vezes os pais passam por fases diferentes à medida que se vão apercebendo da doença do filho: dúvida, desilusão, ansiedade, aceitação.
O clima de confiança que se vai conquistando em cada visita médica, é a ajuda mais preciosa que um médico e o seu doente têm para enfrentar os problemas e contrariedades que podem surgir no decurso da doença.
É importante que o próprio doente e a família participem nos tratamentos, quer medicamentosos quer de recuperação, de forma a estarem atentos aos efeitos adversos e deles darem conhecimento ao seu médico. As relações da criança com DRC com a sociedade dependem, conforme as etapas da infância, dos pais, dos amigos, de outros familiares e dos professores. E a relação da sociedade com a criança?
Como todos sabemos, a criança com doença crónica física tem uma maior percentagem de problemas psicossociais do que as outras. O objectivo na abordagem destas crianças é ajudá-las a conseguir o seu máximo potencial em sociedade. Isto não depende apenas dos conhecimentos médicos e da sua aplicação a cada caso nem dos apoios da família.
As políticas de saúde social têm que se debruçar cada vez mais nestes aspectos particulares. O suporte financeiro para os tratamentos médicos, o suporte social na escola e no trabalho, tem que estar em igualdade de importância com a reabilitação da função de cada criança, bem como o seu adequado tratamento médico.
E como “a união faz a força”, a formação de associações dinâmicas e activas de doentes, médicos, familiares e amigos, enfermeiros, etc. mais sensibilizados para estes problemas, visa principalmente o apoio social que as crianças com doença reumática crónica necessitam.
CONCLUSÃO
Como dizia Barbara Ansell: "importa realçar o estado psicológico da criança reumática e dos seus familiares, sem esquecer o que conhecem acerca da doença e qual a atitude perante ela".
(Adaptado de artigo da autoria de Dr.ª Maria José Vieira - pediatra)